Moda e Crises #2 - o que podemos aprender com a Primeira Guerra Mundial

O texto “Moda e Crises #1 - o que podemos aprender com o passado” fala da moda em meio às intensas mudanças sociais e à efervescência cultural da primeira década do século XX.

A reflexão termina com algumas perguntas.

  • Porque Paul Poiret, com todo o seu talento, que tantos legados nos deixou, não conseguiu sobreviver no mercado depois de passar pela Primeira Guerra Mundial?
  • Quem conseguiu esta façanha?
  • Quais os negócios de moda de sucesso que surgiram depois deste evento histórico de profunda crise para a civilização humana?

Modelos criados por Charles Frederick Worth, Jean Patou e Paul Poiret (Crédito: Wikicommons - Domínio Público - Montagem feita pela Modacad)

É no mínimo curioso que um criador como Paul Poiret, capaz de desconstruir o comportamento dominante na moda a vários séculos e de construir novos comportamentos com suas criações, não tenha conseguido se reinventar mais uma vez no pós-guerra.

Ele foi um estilista que elevou as criações de moda ao status de obras de arte, cuja principal conquista é mudar o mundo ao seu redor. E seus modelos cumpriam esse papel!

Mas muito mais do que isso, Paul Poiret lançou mão dos inúmeros recursos e novidades que surgiram naquela década, para se auto promover e consolidar o sucesso de seus negócios.

Ele tinha o raro talento de enxergar o potencial de novos acontecimentos e comportamentos antes mesmo deles serem amplamente adotados pela sociedade.

Porque então não teria enxergado o estranho potencial contido nas profundas mudanças que assolaram a sociedade arrasada pela guerra?

Comparação entre modelos de Jacques Doucet e Paul Poiret. O estilo romântico do modernismo do século XIX lado a lado com a ousadia contemporânea do início do século XX.(Crédito: wikimedia commons/ Domínio Público)

O que muda na cultura e comportamento no mundo arrasado pela Primeira Guerra Mundial

A efervescência cultural e artística na Europa na primeira década do século XX deu lugar à triste realidade de escassez e destruição deixada pela guerra na década seguinte.

Neste período antes da guerra, a riqueza e o dinamismo do intercâmbio com outras culturas nunca haviam atingido tamanho volume e velocidade! Não só a moda, mas a arquitetura, as artes plásticas e a literatura realizaram obras em uma quantidade e originalidade impressionantes.

Novos costumes, como a prática de esportes e o hábito de viajar, e até o saneamento básico e os avanços na área da saúde, também são sujeitos da criação de um mundo cheio de novas possibilidades.

É razoável supor que um cenário como este sinalizasse um futuro promissor para um número cada vez maior de pessoas na Europa. Sinalizasse com a ampliação do acesso a uma qualidade de vida cada vez melhor.

Mas esta realidade foi completamente dizimada pela guerra.

Bezonvaux, ao norte de Verdun, durante a Primeira Guerra Mundial (Crédito:Imagem: Scherl / Süddeutsche Zeitung Photo)

A terra arrasada do pós-guerra não deixou de pé sequer a infraestrutura básica de saúde, de saneamento urbano e de transporte que tornasse possível a produção e distribuição do essencial à sobrevivência da população.

Esta terra banhada de sangue e saturada de metal e resíduos químicos das toneladas de armamentos detonados, também havia perdido enormes contingentes de agricultores e trabalhadores.

Fábricas, comércios e oficinas de serviços destruídos sepultaram oportunidades de trabalho para os sobreviventes.

A escassez, as sequelas da destruição e a incerteza eram o horizonte intransponível do presente e a vida como se conhecia antes ainda ficaria inalcançável por longos anos.

Na moda isso se traduziu em uma estética utilitária, que pudesse responder aos desafios da escassez de tecidos e aviamentos e à necessidade fundamental de funcionalidade das roupas.

O luxo não tinha espaço neste cenário. Ele seguiu sobrevivendo em pequenas brechas como eventos de grande relevância social e eventos de família das grandes fortunas localizadas em regiões fora das áreas de conflito.

Vestido de noiva de corte reto e silhueta simples. Sem o volume de tecidos e a riqueza de aviamentos, o luxo de antes da primeira guerra ficou bastante limitado (Crédito:DieterMeyrl/iStock)

Agora, as roupas precisavam ser duráveis e adequadas para vestir as pessoas em vários tipos de situação.

A etiqueta social que determinava as roupas certas para cada ocasião, teve que se reinventar da noite para o dia. Os poucos protocolos que resistiram aos novos tempos simplificaram esta etiqueta social de forma impensável na década anterior.

Destaco estas duas mudanças como fatores determinantes de muitas outras mudanças naquela época e de mudanças que sobreviveram àqueles anos. Aquele tipo de mudança que não tem volta. Finca raízes das quais brotam a mentalidade e os costumes que não existiam.

Vestidos bem mais curtos e sem muito volume, mais certinhos no corpo, são a nova realidade imposta pelo racionamento de tecido e pela necessidade de praticidade (Crédito:Lady-Photo/iStock)

Mesmo neste cenário tão difícil, a criatividade, o desejo e o prazer, que são a essência da moda, encontram novos caminhos para ressurgir. O impulso de suprimir a tragédia e reconstruir a normalidade encontra forças na mesma fonte do instinto de sobrevivência.

Mas para Paul Poiret e alguns de seus contemporâneos a estética utilitária entra em confronto direto com a estética das obras de arte.

Mais.

Partindo da premissa de que a Moda é uma manifestação dinâmica de cultura, tão ligada aos acontecimentos quanto o próprio jornalismo, o conteúdo da moda naquele momento informa o oposto da inovação e dinamismo que estes criadores trouxeram ao mundo com suas obras, apenas dez anos antes.

E para concluir, como um criador se reinventa se a matéria de seus sonhos estiver arrasada?

Já é difícil ver a sua visão de mundo sair de cena, como aconteceu com os estilistas do século XIX que resistiram às mudanças do século XX.

Mas podemos supor que para Paul Poiret e seus pares na revolução do guarda roupa feminino naquela década foi um pouco pior. Eles participaram desta luta inglória chamada guerra.

Para mim não há vencedores nas guerras. E entre todas as muitas perdas que elas causam, destaco uma como a mais avassaladora, a perda dos ideais que são a matéria prima dos nossos sonhos.

A estética utilitária e suas consequências

Com a ausência dos homens nas atividades produtivas em decorrência da Guerra, as mulheres foram convocadas para novas funções na sociedade. Esse fenômeno já provoca grandes mudanças no guarda roupa feminino, que passa a precisar de roupas funcionais, marcando o início da estética utilitária.

A longa permanência do conflito aprofunda e diversifica esta estética utilitária, por causa da escassez de tecidos, aviamentos e mão de obra na produção de vestuário. Mas também porque este estilo produz roupas cujo preço é mais compatível com o dilapidado poder de compra das pessoas naquele contexto.

Modelo colorido e ornamentado do início do século XX e modelo da estética utilitária do pós guerra em tons sóbrios e silueta bem mais simples (Crédito: publicdomainpicture |Crédito:lcodacci/istock)

Quando a guerra termina, as mulheres perdem muito do seu protagonismo na vida social, mas um fenômeno pode ser identificado. A estética utilitária havia libertado as mulheres de costumes sociais limitantes.

As importantes mudanças no guarda roupa feminino da primeira década do século XX já haviam sido libertárias. Mas a estética utilitária, imposta pela dura realidade da guerra, havia realizado avanços tão grandes que foi muito combatida no pós-guerra.

Vou citar apenas duas importantes mudanças de grande impacto. A primeira é o comprimento das saias no joelho, aliado aos calçados que não cobriam os tornozelos, que finalmente deixaram as pernas femininas à mostra. A segunda, o racionamento de tecidos que impôs a criação de roupas com pouco volume, uma vez que estas roupas revelavam as curvas do corpo feminino.

Considerando que estas mudanças nas roupas femininas eram muito mais, eram mudanças de comportamento e valores arraigados na sociedade, elas causaram reações fortíssimas, “esticando a corda” entre os dois extremos.

Os estilistas e suas consumidoras que defenderam a permanência destas conquistas e os estilistas e as consumidoras que lutaram pela volta aos costumes conservadores.

Este embate foi tão aguerrido, que em alguns momentos do pós-guerra, o movimento conservador passou por cima até dos avanços da primeira década do século XX, tentando resgatar os ideais do modernismo do final do século XIX, desenhando um estilo com saias de cintura marcada e comprimento na altura dos tornozelos.

Eu particularmente acho incrível que naquele momento, depois de viver uma realidade tão brutal, tantas pessoas pudessem acreditar que fosse possível voltar no tempo e retomar a vida como se o mundo não tivesse mudado de ponta a cabeça.

O que podemos aprender com esta exaltação de ânimos que bruscas rupturas de valores e costumes podem causar?

Que fenômenos de retrocesso estamos testemunhando ao redor do mundo neste momento?

Quais as mudanças de valores estão excitando mais medo na nossa estrutura social para provocar estes retrocessos?

Olhando para este “embate” entre forças conservadoras e progressistas no passado, o que podemos esperar na reconstrução do nosso mundo pós pandemia?

Estilistas e negócios de moda que contam a história destes dois extremos

Madame Paquin

Uma das primeiras estilistas mulheres, Madame Paquin foi a primeira mulher a ser condecorada com a ordem nacional da Légion d'Honneur francesa.

Nascida em 1869, abriu sua maison francesa em 1891, aos 22 anos. Em 1896 abre uma filial em Londres. A estética de suas criações na primeira década de sua carreira era guiada pela sensibilidade do Modernismo, cujo ideal de beleza era uma combinação de elegância e opulência.

Modelo império criado por Jeanne Paquin (Crédito: © 2000–2012 The Metropolitan Museum of Art. All rights reserved. Gift of the Brooklyn Museum, 2009; Gift of Sarah G. Gardiner, 1941)

Ela viveu todas as tranformações da primeira década do século XX. Mas só partir de 1905 começa a aderir à nova estética desta década, iniciando pelo já consolidado estilo dos "vestidos império" de cintura alta. Mesmo assim, em sua trajetória depois disso, vem a ser reconhecida como um dos ícones do estilo com influência art decó deste período.

Mas para mim, mais importante do que a sua habilidade de passar por uma reformulação estética tão profunda como a que aconteceu na primeira década do século XX, foi a sua capacidade de engajamento no setor e a sua rápida resposta à chegada da guerra.

Um dos modelos da coleção Tango de Jeanne Paquin(Crédito Jeanne Paquin-Domínio Público)

Em 1913 Madame Paquin desenha os "vestidos para dançar tango" especialmente para os semanais "Tango Teas" realizados no palácio de Londres. É preciso ser criativo para identificar uma oportunidade como esta. Mas é preciso muito mais! É preciso engajamento naquele seleto círculo de invejáveis "clientes".

Em 1914 ela leva sua coleção primavera para uma turnê nos Estados Unidos, que passa pelas cidades de Nova York, Filadélfia, Boston, Pittsburgh e Chicago, ao mesmo tempo em que abre uma filial em Madrid.

Precisamos entender que essas decisões e escolhas acontecem em um momento parecido com o início da pandemia que estamos vivendo. Um momento em que ninguém sabe o que vai acontecer. Do negacionismo ao alarmismo mais extremado, acredito que ninguém pudesse supor que o horror e a barbárie chegariam tão longe.

Na dúvida, a maison Madame Paquin soube investir em um mercado alternativo, fora da zona de conflito, sem abandonar seu investimento na continuidade da sua expansão na Europa.

A estilista Jeanne Paquin usando uma de suas criações (Crédito: Phillipe Ortiz/ Jeanne Paquin Gown/Domínio Público)

Em 1917 Madame Paquin é eleita presidente da Chambre Syndicale de la Couture.

Feitos impressionantes. Mas não podemos nos esquecer de que Madame Paquin começa seus negócios de moda com seu marido Isidoro Rene Jacob Paquin, um ex-banqueiro e empresário.

Negócios de moda exigem talento como a pedra mor de sua estatura. Mas expertissè em gestão de negócios e capital são um poderoso combustível para uma longa existência.

Gabriele Chanel

Falar de Gabriele Chanel é uma tarefa infindável. Vamos tentar fazer uma breve apreciação da história do seu negócio de moda apenas neste período antes e durante a primeira guerra mundial. Mesmo porque, vai ser impossível não continuar falando dela nos próximos textos desta série Moda e Crises, nos temas da crise de 29 e da segunda guerra mundial. Ela sobreviveu a todas estas crises!

Gabrielle Chanel em frente à sua primeira loja em Paris (Fonte: Chanel.com/ domínio público)

Chanel abriu o seu primeiro negócio de moda em 1909, portanto apenas 5 anos antes do início da primeira guerra mundial, aos 26 anos de idade. Era uma chapelaria. Ela inicia sua carreira profissional como estilista de chapéus e acessórios.

Impossível falar disso sem destacar o fato de que Chanel começa a realizar o seu talento como estilista de roupas, chapéus e acessórios criando o seu estilo pessoal. Ela fazia suas próprias roupas e acessórios. Seu estilo era tão original, que exigia ousadia e carisma de igual talento para usa-los na alta sociedade da época, que ela vem a frequentar, sem ter nascido e crescido neste ambiente.

Por estas duas qualidades Gabriele Chanel se torna conhecida e admirada por muitas mulheres e é esta admiração que cria a demanda por suas criações.

No jargão de marketing atual, seu empreendimento de moda se inicia com muitas barreiras de impedimento, mas a sua persona era fortíssima e provocava um engajamento valioso.

Em 1913, em um evento aleatório de sua vida, que reúne as condições perfeitas de necessidade e talento para uma resposta única, Gabriele recorta e customiza uma peça de malha do seu namorado, criando um vestido que foi o seu primeiro sucesso comercial com roupas!

Ela vende 10 vestidos na sequência e inicia oficialmente sua carreira como estilista de roupas.

O estilo de Chanel se destacava pelo conforto e pela ousadia. Nesta imagem, feita em 1928, ela usa a sua famosa calça pantalona e a blusa listrada "marinheiro", modelos masculinos adaptados inicialmente para o seu estilo pessoal (Crédito: wikipedia/Domínio público)

Durante a guerra Chanel mantém sua loja aberta. É verdade que sua ousadia combina bastante com o estilo utilitário imposto pela guerra. Mas a originalidade de Chanel fala mais alto. Me parece que sua maior qualidade é nunca ter se acomodado em uma zona de conforto.

Ela continua a surpreender e criar desejo com seus modelos, se destacando, mesmo quando todos os negócios de moda têm que criar e produzir dentro da mesma estética utilitária.

E sua “persona” continua provocando engajamento porque responde à realidade gerando novos eventos continuamente. Por exemplo, diante de todas as privações da guerra, Chanel cortou seu cabelo bem curto por necessidade, sem por isso deixar de fazê-lo com profundo senso estético.

Gabriele Chanel em uma de suas mais icônicas fotografias (Crédito: Domínio público/divulgação)

Resultado, gerou um novo comportamento, cabelos curtos para mulheres, mas muito mais do que isso, criou o corte de cabelos curtos queridinho das mulheres há um século, que leva o seu nome.

O que podemos aprender com esta parte da sua história? Quais são os paralelos com a realidade que estamos vivendo agora?

No outro extremo da corda...

Jacques Doucet e Georges Doueuillet

Jacque Doucet é sinônimo de tradição na moda. Sua família já trabalhava no ramo a 3 gerações. Mas foi ele o primeiro desta família a abrir o seu “salão de moda” em 1871, em plena época da estética modernista romântica, de luxo opulento.

Além de estilista de gosto sofisticado, Jacques Doucet foi um estudioso de História da Arte, tornando-se um colecionador que deixou um legado valiosíssimo para a França com o seu acervo. Paul Poiret foi seu pupilo e acredito que isso tenha tido grande influência na concepção de estilo como obra de arte que Poiret realizou em suas criações.

Jacques Doucet entra no século XX ainda na estética modernista e se mantém fiel a ela por alguns anos, atendendo à sua célebre e fiel clientela.

Evolução do estilo de Jacques Doucet. À esquerda, um modelo de 1907, ainda com forte influência do estilo modernista do século XIX. À direita os modelos contemporâneos art decó, estilo predominante antes da guerra, criados depois do fim da Guerra, em 1919, no último ano da segundo década do século XX (Crédito: domínio público/ Fonte: headtotoefashionart.com)

Finalmente ele foi capaz de evoluir o seu design incorporando as mudanças da primeira década do século XX. Mas podemos ver modelos seus de estilo sob a influência art decó desta década, no final da década seguinte, em 1919, quando uma outra realidade, a da estética utilitária, já estava consolidada.

Depois que o reinado de Jacques Doucet terminou em 1929 com a sua morte, sua Maison se fundiu com a de Georges Doueuillet.

Dá só uma olhadinha neste modelito de Georges Doeuillet de 1912!

Modelo de Georges Doeuillet de 1912 (Crédito: Domínio público/Fonte:headtotoefashionart.com)

No próximo texto vamos atrás de saber o que aconteceu com esta fusão durante e depois da Crise de 1929.

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Aproveite para ler também o episódio #1 da série:
https://blog.modacad.com.br/moda-e-crises-1-o-que-podemos-aprender-com-o-passado/

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